domingo, 7 de abril de 2013

Memórias do subsolo


Alguns filhos da literatura russa eram especialistas em demônios. Trechos perturbadores de obras de Dostoiévski e Tolstoi, por exemplo, usavam este simbolismo demoníaco para representar o sofrimento humano. Quando terminou Brasil 1 x 1 Rússia, no último 25/3 em Londres, Casagrande desabotoou o terno de comentarista, suspirou feliz com o dever cumprido e comemorou, sem ninguém saber, mais uma vitória sobre seus demônios brasileiros.
Craque do Corinthians, Caldense, Seleção, Porto, Ascoli, Torino, Flamengo, São Paulo, Walter Casagrande Júnior desde moleque aprendeu a conviver com a luz na cara. Seja a incômoda lanterna de algum policial a serviço da ditadura, seja os holofotes potentes e frágeis do mundo do futebol. Para muitos, é o melhor comentarista da televisão brasileira. Identificado com o Corinthians, sempre foi respeitado pelos torcedores de todos os times, paulistas ou não.
Mas durante um ano, Casão viveu na escuridão. No porão dos próprios pesadelos. Internando numa clínica para dependentes químicos no interior de São Paulo, enfrentou um exílio forçado e conseguiu da opinião pública algo raríssimo hoje em dia. Respeito e solidariedade. Talvez para retribuir, do seu jeito, esta atitude generosa do público, Casagrande aceitou o convite do jornalista Gilvan Ribeiro. Juntos, eles cunharam um dos melhores livros do ano. “Casagrande e seus demônios”.
Casagrande é ídolo do escritor Marcelo Rubens Paiva, uma das melhores cabeças do país. “Casão faz questão de contar o inferno que viveu quando era viciado em drogas e sua internação, pois para ele é fundamental passar adiante a experiência, dividir as dores da dependência e alerter para os perigos de um vício frenético, sem preconceitos, desvios ou mentiras. A verdade ajuda a sanidade.”
Casagrande também é ídolo do escritor Antonio Prata: “Casagrande é um dos meus heróis –– e não estou falando só de futebol. Quantas pessoas por aí podem se orgulhar de ter gravado o nome nas súmulas dos principais jogos do país, nos anos 1980, e nos arquivos do SNI ( Serviço Nacional de Informações, órgão dedicado a espionar os cidadãos “suspeitos”, durante a ditadura)? Quantos podem dizer que subiram ao palco para cantar com a Rita Lee e ao palanque para lutar pelas diretas? Quantos, atuando numa das melhores equipes do futebol profissional brasileiro, arrumariam tempo para continuar jogando num time de várzea, o Veneno, da rua Jaborandi, e ainda ajudar a fundar um partido político, o Partido dos Trabalhadores?”
O livro é exatamente como os comentários de Casagrande. Franco, direto, profundo e sem a menor preocupação em agradar alguém ou fazer média. Gilvan Ribeiro passeia pela vida de Walter Casagrande Júnior por vezes em ordem cronológica, por vezes usando o recurso do “flashback” com sutileza, poesia e maestria.
Assim como um contra-ataque fulminante arquitetado por Biro-Biro, Zenon, Sócrates e Casagrande, o livro é cativante, rápido e difícil de largar. São 234 páginas que passeiam pela vida de um dos jogadores mais interessantes do futebol brasileiro. Por vezes maldito, por vezes corajoso, o atacante cabeludo de sotaque carregado e beiços atrevidos fez história em campo. E, depois que parou, precisou suar a camisa para não perder a partida mais importante da vida. A própria vida.
A primeira parte do livro é pauleira, como um rock ouvido no volume máximo. Gilvan Ribeiro nos conta as várias internações de Casagrande, antes e depois da Copa de 2006. Na Alemanha, ele foi curado e revigorado, trabalhou muito bem, mas os tais demônios suspenderam a trégua no Brasil. O que mais doía no coração do craque era como andava fazendo mal à própria família, já que conseguira esconder o vício da mulher e dos três filhos durante muito tempo. Antes da internação final, em 2007, Casão estava separado, recluso e solitário. Uma presa fácil, como ele mesmo conta.
“Eu tinha visões horríveis, tudo parecia muito real. Estava assustado pra caralho, via demônios pelo apartamento inteiro. Eram maiores do que eu, com dois ou três metros de altura. Alguns apareciam no quarto, outros na sala, e até uma imagem de mulher surgiu refletida na geladeira. Aí́ eu comecei a ficar com medo de ir à cozinha, já não comia, nem me sentava no sofá, porque eu os via em todos os lugares, todos os dias, constantemente. Não falavam ou me ameaçavam, mas a simples presença deles era aterrorizante. Isso durou um mês, sei lá, um mês e meio”, conta o ídolo.
Passado o inferno, o livro volta no tempo, pula o purgatório e chega ao paraíso. Se bem que na virada dos anos 70/80 era impossível chamar de paraíso um país sob as botas da ditadura militar. Mas o bairro da Penha, na Zona Leste de São Paulo, era onde Casagrande crescera e cultivara as grandes amizades da juventude. Lá começou a namorar, fumou maconha pela primeira vez, jogou bola até tarde da noite e levou as primeiras duras da polícia. É delicioso ser apresentado aos parceiros Cancela, Jajá, Marquinhos, Ocimar e Magrão ( não o Sócrates), que integravam a Turma do Veneno. O livro mergulha nesse jeito periférico de ser e explica as origens da coragem casagrandiana em dizer o que pensa.
Foi dizendo o que pensa que quase esculhambou a carreira, iniciada aos 13 anos na base do Corinthians. Brigou com o treinador Brandão em 1981 e foi emprestado para a Caldense. Seu Walter e Dona Zilda o ajudaram a segurar as pontas, sozinho em Poços de Caldas, e o retorno ao Parque São Jorge foi triunfal.
Já estamos no meio do livro e é hora de conhecer os bastidores da democracia corinthiana. De como o jovem cabeludo se tornou um dos melhores amigos do jovem doutor Sócrates. Da confusão com o goleiro Leão, que chegou ao time e questionou a democracia, e do verdadeiro sentimento que ele tem pelo então desafeto político de mangas compridas.
“Tudo na vida de Casagrande orbitava em torno da experiência democrática no clube. no auge da empolgação, ele defendia com unhas e dentes os ideais de liberdade, engajava-se na luta pelas eleições diretas para presidente da república e pelo restabelecimento pleno dos direitos civis no país. Também concedia entrevistas a respeito desses assuntos e estimulava um grande contingente de jovens a abraçar as mesmas causas: tornara-se um símbolo dos tempos de mudança que se anunciavam cada vez mais palpáveis. O regime militar tentava se manter a todo custo no poder, mas já dava sinais claros de esgotamento.”
Casagrande brilhava em campo e nos palcos. Foi bicampeão paulista 82/83, conheceu artistas militantes e não via nas drogas um inimigo. Foi pego e preso numa blitz. Cocaína. Uma droga que ele já conhecia muito bem, mas que naquele dia garante que foi vítima de uma armação policial.
Os capítulos vão se seguindo frenéticos e cheios de informação e mergulhos deliciosos no passado. A relação de amor e ódio com Sócrates, sua ida para o Porto, as aventuras italianas no Ascoli e no Torino e a confissão de que jogou dopado quatro vezes. E que isso era normal. “Em geral, injetavam Pervitin no músculo. Instantaneamente, a pulsação ficava acelerada, o corpo superquente, com alongamento máximo dos músculos. Podia-se levantar totalmente a perna, a gente virava bailarina… (risos). Isso realmente melhorava o desempenho, o jogador não desistia em nenhuma bola. Cansaço? esquece… se fosse preciso, dava para jogar três partidas seguidas.”
Assim como a excelente biografia do tenista André Agassi, o livro sobre o Waltinho que virou Casão emociona e faz refletir. Como ficar indiferente a um parágrafo como este:
“Havia entrado em convulsão. O seu corpo se debatia e fazia uma tremenda barulheira ao se chocar com os ladrilhos e o vaso sanitário. Entretido com o computador, Leonardo ouviu o som da queda e tomou um susto. Veio correndo e bateu na porta: “Pai, pai, o que está acontecendo? O que está acontecendo?”, repetia, aflito. Casagrande ainda conseguiu responder: “Calma, não é nada”. Mas também falava palavras desconexas. só uma coisa passava por sua cabeça naquele instante: “eu não posso morrer aqui, com meu filho do lado de fora do banheiro. não posso morrer!”.
“Casagrande e seus demônios” já se tornou um livro obrigatório para quem gosta ou não de futebol, para quem gosta ou não do personagem-título. Gilvan nos mostra o lado humano e visceral de um garotão cabeludo que gostava de rock, futebol e aprendeu a querer mudar o país. Num mundo tão estranho e sem ideais como o de hoje, terminamos o livro com a estranha sensação de que, por vezes, os demônios somos nós mesmos.

2 comentários:

  1. Quero muito comprar esse livro!
    Adorei a matéria.

    Tô escrevendo um blog com a minha história: http://carolcodependente.blogspot.com.br/

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    1. Ola ! Carol.
      Recomendo o livro ; ¨ DROGAS O árduo caminho da volta.¨ Darléa Zacharias
      muito bom a leitura.
      Vou lhe fazer uma visita ao seu blog.
      Bons momentos SPH

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